A TRANSFERÊNCIA PSICANALÍTICA E A DINÂMICA DA RELAÇÃO CLÍNICA

  • Introdução sobre o conceito transferência

A transferência, uma das mais importantes descobertas de Freud (1905), constitui um elemento central e principal de qualquer tipo de psicoterapia psicanalítica. Também se reconhece a interpretação adequada da transferência com um veículo importante, por meio do qual mudanças psíquicas podem ser feitas no processo psicanalítico.

Neste trabalho, apresentaremos uma estrutura dentro da qual o psicanalista ou psicoterapeuta de orientação psicanalítica pode organizar sua experiência com o paciente à medida que a análise e a transferência se desenvolvem.

Muitos estudos foram desenvolvidos em diversas línguas sobre transferência. Um dos estudos a nível de pós-graduação (Terzis 207 e Brum, 1998), revisa as ideias originais desenvolvidas por Freud sobre o fenômeno da transferência na psicanálise.

A transferência é o conceito que serve de contexto à psicanalise porque é a partir da transferência que pensamos a dinâmica da relação clínica entre os sujeitos que se comprometem no processo psicanalítico. Em si mesma, a transferência compõe-se de duas noções fundamentais, uma delas faz referência ao conjunto de sentimentos que manifestam-se na vivencia clinica e condensam-se na palavra amor, dando assim ênfase à ideia de amor de transferência. A outra noção que contém a palavra transferência não pertence em exclusividade à psicanalise porque é utilizada também pelas ciências contáveis para referir-se aos deslocamentos de valores de uma entidade a outra. É em parte com esse mesmo sentido que será mantida na psicanalise e destacará a existência de uma repetição necessária para que ditos deslocamentos sejam possíveis.

A transferência, em um significado mais amplo, no sentido de que nossa experiência de relacionamentos passados afeta nossas relações presentes, embora de maneiras complexas das quais não temos consciência.

Entretanto, a transferência pode ser convenientemente definida em um sentido mais restrito; nesta visão, a transferência do paciente aparece na analise da medida em que a relação paciente-analista é afetada inconscientemente por experiências revistas e remodeladas de relacionamentos passados e desenvolve-se além dos modelos costumeiros de relação e sentimento interpessoal.

  • Antecedentes da Transferência

É muito interessante observar a história particular do conceito de transferência, que foi revelado a partir de uma confusão de relações entre o medico e a paciente, que isto logo chamou-se transferência começou a ter a consistência de um problema a partir das dificuldades que estabelece.

Pode-se seguir, passo a passo, a conformação do conceito em Freud “estudos sobre a histeria” com Breuer (1893-1895), até as trilhas de seu desenvolvimento em fragmento da análise de um caso de histeria (1905), e depois na elaboração final, nos textos recordar, repetir, elaborar (1914) e logo observações sobre o amor transferencial (1915).

O primeiro dos textos que aqui mencionamos foi escrito por Freud (1893-95) em colaboração com J. Breuer, depois de alguns acidentes que recordaremos aqui, não continuava muito interessado no tema. Mas o interesse de Freud em publicar esse livro radicava no tipo de cura que havia levado adiante seu colega Breuer com uma paciente, Berta Pappenheein, que chegaria às páginas com o apelido de Ana, a cura dos sintomas de Berta resulta do método que Breuer chamou catártico (palavra derivada de grego kaθapos que significa saúde e assimila-se com a ideia da purificação), e que consistia em que a paciente, sob os efeitos da hipnose descobrisse para si mesma as lacunas e os mistérios da sua própria historia. E o original deste caso clínico foi a observação de que quando a paciente recordava as circunstancias que causavam a aparição dos sintomas e estas causas podiam ser explicadas verbalmente, os sintomas desapareciam sem que fosse necessário o estimulo sugestivo.

Porem, enquanto este tratamento caminhava sobre os trilhos da livre expressão, a relação irrompe em uma história de amor. Berta enamorou-se de Josef, seu medico, e como modo de expressão do seu desejo, começou a ter dores no abdômen como se fosse uma gravidez. Josef Breuer ante esta situação incomodado optou, com certo radicalismo, por abandonar o tratamento que juntos desenvolviam. E embora tudo, até esse momento, tivesse sido feito em termos de relação clinica profissional, tanto um como outro, agora encontravam-se imbuídos de fortes afetos que impulsionavam tangencialmente aqueles interesses científicos. No mesmo momento em que estes afetos tomaram uma evidente vertente de sexualidade, Breuer projeta uma viagem com sua família para retornar a paz no núcleo do lar e sair da cena, fracassando clinicamente por sucumbir à confusão afetiva que logo se conheceria, alguns anos depois feito conceito, como uma extrema expressão da transferência.

Sem mais demora, devemos aqui ressaltar dois aspectos importantes deste caso clinico. Por uma parte, a palavra plena e eficaz expressa do lado da loucura que supera o poder do saber, e pela outra parte o erótico como um fundamento das relações humanas nas alturas morais do saber cientifico. Estas duas revelações tiveram que esperar alguns anos para ficar como conceitos e assim dar os seus frutos.

Hoje é necessário que todos os que queiram ser psicanalistas comecem pela própria analise, fale encostado no divã sua própria loucura.

  • Delimitação do conceito

Teremos que esperar ate o caso Dora, escrito no ano 1901 e publicado no 1905, porque é nessa relação analítica que Freud descobre com maior precisão qual era o lugar que lhe correspondia no exercício do seu oficio e que problemas enfrentava em suas psicanalises. É uma história clinica que ainda hoje serve de argumento para o estudo do sujeito, uma vez que mexe com as sutilezas da estrutura psíquica da neurose.

…Meu objetivo nesta história foi de demonstrar a intima estrutura de uma perturbação neurótica e a determinação de seus sintomas… (Freud 1905 a pg.10).

E a partir da estrutura das neuroses surge a necessidade do conceito de transferência. Com isto exemplifica-se um método de trabalho, porque Freud esclarece-nos desde o começo que as transferências não são uma produção da psicanalise, senão que, sempre existiram tanto em meios clínicos como nos meios educativos e a psicanalise somente se encarregara de desvendá-las. Então, desde sempre formando parte da estrutura interna das neuroses. Depois, vem a pergunta:

… Que são as transferências? São as novas edições dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o andamento da analise: possuem, entretanto, esta particularidade, que é característica de sua espécie: substituem uma figura anterior pela figura do medico… (Freud 1905 a pg.113).

Na clinica psicanalítica produzem-se situações propícias para uma nova atualização do passado e o que não se mostra como lembranças a partir da fala do paciente ficará depois evidenciado como repetição no atuar dos acontecimentos passados na atualidade da cura. Como  foi para Freud, esta é seguramente a mais rica das experiências que o psicanalista extrai da sua própria análise, é exatamente isso o experimental da clinica que se transmite somente mediante a repetição da própria historia de cada sujeito. Enquanto o paciente esteja no tratamento, diz-nos Freud (1914), não estará livre desta compulsão à repetição e este fenômeno é sua forma de lembrança.

Foi o caso de Dora que Freud encontrou seu lugar de analista durante o processo da cura e encontrou também seu lugar na experiência de não ser nada mais que um operário de uma função de substituição. Sendo esta vaga o espaço para uma substituição da pessoa objeto anterior pela figura do psicanalista, compreendeu que a transferência é um mal necessário, imprescindível e inevitável. É necessária para a continuação do tratamento, ainda que tenha todas as características de um estorvo e o agravante de não manifestar-se senão com ……levíssimos indícios… (Freud1905 a pg113) que devem guiar a interpretação. Diremos então que a transferência é o conceito que serve de contexto à psicanalise, uma vez que uma das noções que a define, é a de repetição e isto implica o deslocamento das vivencias do paciente a uma situação atual com a pessoa do analista que substitui a pessoa que era o objeto anterior.

  • Desenlace e estado atual do conceito 

Uns quinze anos depois de escrever acerca das repetições no caso Dora, por volta do ano de 1915, quando o conceito já estava estabelecido, produzindo os seus frutos e dando conta dos movimentos da clinica a transferência passa ter um substantivo a ser utilizado como um adjetivo qualificativo do amor que se põe em jogo na situação clínica. Mas esta variação que Freud se viu obrigado a fazer pelas condições que oferecia a clinica não ficou muito clara para os seus sucessores e foi assim que no ano 1964, Lacan observou:

A transferência, na opinião comum, é representada como um afeto. Qualificam-na, vagamente de positiva, ou de negativa. Freud colocou, muito cedo, a questão da autenticidade do amor tal como ele a produz na transferência. Para dizer logo, a tendência geral é sustentar que ali se trata de uma espécie de falso amor, de sombra de amor. Freud, ao contrario, está longe de ter feito pender a balança neste sentido”. ( Lacan, 1964 pg119).

Estas palavras que foram escritas em meados dos anos sessenta, mantem ainda hoje a atualidade, e falamos isto não só porque resulta-nos difícil achar um texto psicanalítico que estude o amor erótico entre o psicanalista e o paciente, senão porque também a transferência foi simplificada até se hoje mais comum encontrar os termos alianças terapêuticas  positivas ou negativas, e isto acontece ainda que se trabalhe com o restante da terminologia da psicanalise. Em uma evidente oposição com a tendência de Freud, é comum para a atual massa de psicólogos, a ideia de que o amor com que trabalha o psicanalista não é um amor verdadeiro, senão somente um símil emocional.

Freud (1915) expressa sua posição, sem distorcer as palavras no texto.

Observações acerca do amor de transferência, e depois de submeter sua ideia a algumas críticas, não demora em declarar-se a favor da autenticidade do amor que surge na clinica. O resultado das suas experiências mostra-lhe repetidamente que aquele que surge na experiência psicanalítica é um amor genuíno, e tanto como qualquer outro amor. O fato de que o amor de transferência, seja um amor resultante da soma dos rasgos antigos de outros amores, ou que esteja composto de repetições e que edite novamente as reações infantis não são características que diferenciam-no do amor verdadeiro porque todos os amores constituem-se essencialmente sobre estas bases. não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos infantis (op. Cit pg 218) diz-nos Freud: e não se encontrará motivo para negar ao amor sua autenticidade ainda quando a situação onde se desenvolva seja clinica. O fato de que seja um amor experimental por ser provocado pela psicanalise não marca mais que uma diferença ética porque este amor, ainda que peça algumas regras é genuíno. E o fato que seja intensificado pelas resistências do paciente à analise, isto é, que seja um amor cego, não o diferencia demasiado porque o amor loucoé tomado pelo mais genuíno dos amores.

Aquele analista que aceite a existência deste amor deverá segui-lo e o psicanalista não deve provocar um namoro, deverá sim, estar com atitude para deixa-lo surgir. E não fazer abstinência de tudo o que o paciente deseja, não deverá negar a beleza, não deverá fugir nem negar, porque isso não o poderia aceitar neurótico nenhum.

…Seria exatamente como se após invocar um espirito dos infernos, mediante auto-encatamentos, devêssemos manda-lo de volta para baixo. Sem lhe haver feito uma única pergunta. Ter-se-ia trazido o reprimido à consciência para reprimi-lo mais uma vez. Num susto. Não devemos iludir-nos sobre o êxito de qualquer procedimento deste tipo. Como sabemos as paixões são pouco afetadas por discursos sublimes… (Freud,1915 pg 213).

A posição tomada por Freud é clara porque não teme o amor erótico dos seus pacientes, e servirá a este amor já que o amor é como uma ponte que não se constrói somente de um dos seus lados. Servir o amor é a condição necessária que Freud encontra para servir-se dele na análise. Estes são os motivos de Freud para falar do amor de transferência como o motor da análise, motor que tem que seguir na frente apesar das transferências e através delas mesmas. Assim é que Freud (1905) se servirá dos poderes do amor, tomando-o como seu mais poderoso aliado.

…A transferência, que parece predestinada a agir como maior obstáculo à psicanalise torna-se seu mais poderoso aliado se sua presença, puder ser detectada a cada vez e explicada ao paciente… (pg 114).

Mas é um aliado, e como consequência disto, para que este amor de os resultados, o psicanalista está proibido de qualquer possibilidade de satisfação dos desejos eróticos postos no jogo. Por muito que estime o humano a realização amorosa, o psicanalista, para sustentar-se como tal deve ter a abstinência sexual como o axioma anterior. E assim, quanto mais seguro esteja de que este axioma é inquebrável, mais proveito analítico aproveitará do amor.

Freud esclarece-nos que a abstinência é necessária, mas não pelos preconceitos da sociedade em que vivemos, senão porque é a única forma que pode levar ao fim do tratamento psicanalítico, por ser esta a forma de manter o motor.

Em um dos últimos parágrafos do artigo que lemos acerca do amor, encontramos a descrição das características eróticas do paciente que podem por em perigo a continuidade do tratamento psicanalítico. Não é nunca a proposta grossa de ato sexual perigoso, mas sim a sedução fina, essa que não se mostra, mais que ocultando-se aos nossos olhos. Ou seja, a verdadeira sedução é a que pode fazer o analista esquecer que isso que está em jogo na análise não é o que o paciente pode supor como objeto desejável.

Em síntese, o desenvolvimento da transferência é descrito como sendo dependente da interação do paciente-analista, ela vem a refletir mais a estrutura intrapsíquica do desenvolvimento psíquico à medida que a regressão do paciente e o envolvimento do analista nos conflitos do paciente aumentar. Quando ela aparece, a estrutura complexa dos temas relacionados que constituem a transferência emerge de revivências transferência mais episódicos de experiências passadas, a partir das quais o analista pode reconstruir os contornos do desenvolvimento psíquico primitivo. Os fatores de resistência do paciente e de contratransferência do analista podem impedir o desenvolvimento, o aparecimento e o reconhecimento de manifestações de transferência.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

Freud (1905) fragmento de uma análise de um caso de histeria. Edit.  Santard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1988.

Terzis A. transferência e contratransferência. Rev SPAGESP, 8; 1-10,2007.

Brum, G. H, Terzis A. (orientador) a psicanálise em interseção com a maiêutica. Mestrado, PUCC, 1998.

Breuer, J e Freud, S (1893-1895) estudos sobre a histeria. Edit. Standart Brasileira. Rio de Janeiro, Imago 1988.

Freud, S (1914) recordar, repetir, elaborar, Imago, 1988. Edit. Standart Brasileira. Rio de Janeiro, Imago 1988.

Freud, S (1915) observações sobre o amor transferencial. Edit. Standart Brasileira. Rio de Janeiro, Imago 1988.

Lacan, J (1964) los quatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, Tad Oscar Masalta Bs AS, Ed. Siglo XXI, 1976.

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